A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA EM BUSCA DA NOSSA MEMÓRIA
RESUMO
Após os séculos XVI e XVII, a Europa conheceu a cultura dos povos americanos. Para colonizá-los e defendê-los, sob os caminhos da fé cristã e dos invasores navegantes, respectivamente, o rei de Portugal nomeara os seus representantes legais, estabelecendo a sua conquista e a harmonia em sua colônia americana.
A produção de açúcar revelou a primeira fonte de riqueza da vasta região e, com isso, despertou o interesse de inúmeros estrangeiros. A concentração dessa riqueza favoreceu a imigração desses povos, criando diversos cultos, ritos e tradições entre as raças que na colônia se estabeleceram.
Diante do imenso desinteresse em cultuar e preservar a nossa memória, ao longo dos anos, espelhamo-nos e assim buscamos-la nas memórias européia e mais recente, nas africanas. Recorrem, pois, a arqueologia histórica para compreendermos as relações culturais desses povos antigos que habitaram aqueles primeiros séculos do Brasil, mesmo impregnados de diversos modelos culturais dos conquistadores (que foram aqui aculturados), bem como os inúmeros edifícios civis, pelegrosos, solares e fortalezas erguidas na imensidão do país, muitos dos quais já em ruínas ou desaparecidos e outras ainda em uso.
Palavras Chave: Arquitetura, Patrimônio Histórico e Arqueologia Histórica.
Somente a partir dos séculos XV e XVI, através da revolução comercial européia, séculos das navegações ultramarinas daquela época, o continente americano passaria a ser conhecido pelos europeus. Importava, naqueles séculos, muito mais do que compreender o novo continente fazê-lo sob seus domínios razão porque das inúmeras estórias fantasiosas de mares tenebrosos e imensas terras hostis. Contudo, era preciso colonizá-las e defendê-las, dominando os selvagens que nela habitavam para conduzi-los aos caminhos da fé cristã. Nesse aspecto, el Rei de Portugal não poupou cuidados para estabelecer a harmonia e a ordem na sua colônia quando procurava capitães experimentados e que fundamentassem a sua dominação, escolhendo homens distintos em virtudes e em ciência para “doutrinarem as verdades da fé, da moral e da honra aos desgraçados povos, que desconheciam o evangelho, e enchiam os vastos sertões do Brasil”, conforme relato da professora Célia Freire A. Fonseca – UFRJ. (A economia Européia e a Colonização do Brasil, p. 109, 1978).
A fixação de marcos divisórios ou de posse, caracterizava a legitimidade da terra conquistada, determinando os seus verdadeiros proprietários. Dominadas as terras e estabelecido o lusitano no Brasil, seus objetivos eram perfeitamente determinados pelo Reino, conforme experiências anteriores obtidas. Depois dos primeiros aldeamentos – situados sempre em locais mais elevados, nos outeiros dos morros existentes – o português efetivou a posse da terra com a instalação do sistema de capitânias.
Observa José Luiz Mota Menezes que “tão logo assentaram-se as primeiras vilas e cidades uma série de caminhos foram sendo traçados sobre as terras conquistadas, onde os rios eram vias fluviais de grande interesse” (Mota Menezes, p.24, 1986). Esses caminhos que, além de facilitarem a circulação de riquezas produzidas, deram origem – através de excelentes cartógrafos – aos antigos mapas com as melhores informações. Lenta mas continuamente, esses caminhos chegaram ao interior – às terras desconhecidas do sertão – determinando novas fronteiras de produção e circulação dos produtos.
Diante das notícias adversas acerca das descobertas dos metais preciosos, resolveram os portugueses partirem para a produção de açúcar de cana, instalando os primeiros engenhos de açúcar, que se proliferaram produzindo riquezas e despertando o interesse das empresas comerciais estabelecidas na Holanda. A esse respeito, comenta Evaldo Cabral de Mello (1998) que, “Portugal praticara, especialmente a partir do reinado de D. João III, uma política de deliberado alheamento dos conflitos europeus, em favor da expansão e preservação das conquistas ultramarinas na Ásia, África e no Brasil” (de MELLO, 1968: p.25).
Mas, apesar dessa crescente produção e exportação de açúcar, inegavelmente, a luta e o desbravar territórios pela sobrevivência e a ambição por riquezas eram constantes. Não obstante alguns poucos cronistas preocuparem-se em fazer episódicos registros do que presenciavam no novo continente, continuava este, na verdade, para a Europa, um mundo desconhecido.
As tradições e os diversos cultos à memória brasileira – mesmo da maneira incipiente por não termos, ao longo da história, o costume ou o hábito de nos preocuparmos em preservá-los – somente em épocas mais recentes vem despertando o interesse em receber esses registros de memórias. Indubitavelmente, buscamos as nossas raízes nas memórias europeias ou africanas (isso bem mais recente) e pouco nos referimos da nossa memória indígena, tão rica e esquecida.
Entretanto, convivemos em nosso cotidiano com o fato de estarmos ou sermos e não estarmos ou não sermos, razão pela qual o passado e o futuro são, indiscutivelmente, os suportes do nosso presente. Encontramo-nos, permanentemente, entre saudades, memórias, expectativas, ou a reconstituição do ontem e a construção do amanhã.
A compreensão de como nossos antepassados removiam ou trabalhavam a terra, como produziam os seus artefatos de conformidade com os elementos naturais que encontravam – pedras, madeiras, metais ou argilas – para atender às suas necessidades, sempre foi uma indagação constante entre os historiadores, pesquisadores e arqueólogos. Recorda a professora Suely Cisneiros Muniz (UFPE) que “em um determinado momento da história brasileira conviveram, ao mesmo tempo, as requintadas faianças vindas da Europa e os potes e as tigelas de barro, peças utilitárias em meio à população, confeccionadas em grande escala até os nossos dias, embora a partir do século XIX as louças européias – produto do processo de industrialização mundial – invadiram as casas brasileiras”. (Folha de Pernambuco, Caderno Programa, 09.07.2009. p. 06).
O interesse em preservar a cultura de uma sociedade é decorrente da intenção de preservar a sua memória. Nesse sentido, comenta o professor José Américo Motta Pessanha que, “qualquer projeto de desenvolvimento no campo sócio-econômico-cultural deveria, cautelosamente, apontar para frente, sem anular o passado. Ou seja, preservar o passado sem esquecer que o futuro nos aguarda e que é sempre no presente que estamos acontecendo”. ( Motta Pessanha, Revista do Patrim. Hist. Art. Nacional, 1987, nº 28, p. 17). É bem verdade que esse interesse em preservar as suas culturas oscila entre povos e nações e, em muitas ocasiões, dependem dos seus próprios líderes, de transmitirem às futuras gerações as suas formas de expressão, os seus costumes e os seus ritos. Mas, de outra maneira, esse sentido de transmitir ou preservar as culturas ou memórias pode ser interrompido, às vezes até abruptamente.
Tanto os espanhóis quanto os portugueses, antes de aqui aportarem, ignoravam a cultura dos povos indígenas, e dizimaram, então, vários desses povos. A conquista do Antigo sobre o Novo Mundo era narrada como um direito do europeu lusitano por ter descoberto essas novas terras. Diante dessa situação de conquista, verifica-se, portanto, a degradação parcial dos antigos costumes, que são substituídos por novos modelos dos conquistadores, que se agrupam e se acomodam, restando, mais tarde, apenas algumas lembranças disformes.
Nos centros urbanos degradados, somente em alguns trechos mais privilegiados, aonde guardam alguma parcela de convivência e de sociabilidade é que nós vamos encontrar vestígios de relações mais antigas, vivendo em meio à modernidade que lhes serve de moldura. Estão livres e isentos de modelos artificiais e de competições desiguais e indesejáveis, e podem viver cultuando os seus ritos e memórias. Nesse sentido, é importante relembrar as observações de Anne Marie Pessis, em relação ao conhecimento e ao cotidiano dos povos indígenas e sua preservação dos indicativos culturais, através dos seus registros escritos¹.
Na verdade, quando nos deparamos com a questão da preservação dos indicativos culturais de um povo, torna-se imprescindível, como revela Henry Koster (1942), o registro documental. Sem esse registro documental, muitos povos e nações indígenas perderam a sua memória e identidade para a história. Não obstante, além do registro documental, surge outro elemento encontrado em meio ao tempo cultural, como se expressa admiravelmente Gabriela Martin, “o objeto arqueológico, seja ele instrumento artefato, fragmento ou registro do que se tem chamado cultura material, é um documento sobre os grupos humanos pré-históricos de sua organização social e familiar, dos costumes, ritos, lutas, alimentação e vida espiritual. De restos arqueológicos orgânicos e inorgânicos deduzimos comportamentos, formas de vida e luta pela sobrevivência humana. (G. Matin, p.134). Portanto, reveste-se de inquestionável valor este elemento para o estudo da arqueologia, porquanto nos coloca diante da incessante busca dos hábitos e ritos de sociabilidade dos nossos antepassados.
Os primeiros estudos sobre a arqueologia pré-histórica brasileira aconteceram, em princípio, enriquecidos através dos inúmeros sítios arqueológicos espalhados pelo país – a exemplo da região do Parque Nacional Serra da Capivara: “No parque Nacional Serra da Capivara e nas áreas arqueológicas do Nordeste do Brasil, existe uma densa concentração de Sítios arqueológicos pré-históricos. Centenas de Sítios com pinturas e gravuras pré-históricas foram descobertos a partir da década de 70. Os trabalhos de pesquisa e de conservação do patrimônio cultural fazem com que novas descobertas modifiquem, continuamente, o volume desse acervo gráfico na região.” (PESSIS, p.79, 2003). Somente em anos mais recentes, levado pela forte influência européia sobre as nossas gerações passadas, é que a arqueologia histórica revestiu-se de importância e alargou as suas ações, priorizando o estudo de importantes edificações em forma, muitas delas, de ruínas, como nos revela o excelente lisboeta Nuno Saldanha - “ontem, como hoje, as ruínas mantiveram sempre um fascínio e uma atração especial, tão duradoura quanto a sua própria existência ao longo dos tempos. Serenas ou tempestuosas, melancólicas ou grandiosas, idílicas ou épicas, as ruínas fizeram sempre parte do dia-dia dos homens e, tal como as próprias edificações, elas tanto são o resultado da ação da natureza e do tempo, como o fruto da própria destruição humana” (1995. p.251) – em sua maioria de caráter lusitano.
Assim, foram os edifícios erguidos desde o período Brasil colônia – como as casas de Câmara e Cadeia, os primeiros templos e igrejas, inúmeros engenhos, o casario mais antigo da cidade, os solares, muitos palácios e outros exemplares que se constituíram em referências para o estudo e a compreensão da arqueologia histórica brasileira – nesse intuito, constituiu-se em uma magnífica oportunidade a restauração do edifício do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, porquanto todo esse trabalho ganhou inusitadas dimensões e importantes convicções.
Ultimamente, tem-se discutido acerca de “novos vestígios” arqueológicos evidenciados – a exemplo dos vestígios do antigo adro franciscano (do século XVII), encontrado através de uma escavação, no sítio histórico de Olinda (PE) – cujas análises e opiniões traduzem divergências estampadas nessas discussões e que prevalecendo à opinião da Prefeitura Municipal de enterrar os vestígios arqueológicos encontrados, estes permanecerão, assim, ignorados pela população e visitantes, enterrando, também, vestígios que trazem narrativas da cultura brasileira. Desta forma, comenta o professor José Luiz Mota Menezes “todas as discussões e informações obtidas ficam atreladas e restritas aos participantes do grupo de trabalho, não se estendendo – tais informações – às comunidades”. (1985, p.54) E nessas inúmeras discussões realizadas, uma questão de grande importância tem sido continuamente evidenciada – e aplicada em trabalhos executados pela Pós-graduação em Arqueologia da UFPE – de que seja realizada toda a prospecção arqueológica do sítio considerado antes da instalação do canteiro de obras – exemplo largamente divulgado e de importância incomum foi o trabalho realizado na Fortaleza de Orange, em Itamaracá (PE), pelo arqueólogo Marcos Albuquerque, da UFPE. Relembra o professor Marcos Albuquerque que “é impossível à arqueologia responder a todas as questões de maneira corrente em um curto espaço de tempo, quando a história levou anos e anos para criar e formar aquele lugar cultural”. (1986)
A catalogação e interpretação dos vestígios culturais encontrados demandam um precioso tempo, pois que, como afirma Moberg (1968, p.19) “é preciso escavar e registrar para que toda a informação não se perca definitivamente”.
Tem sido alvo de nossa preocupação – expresso em encontros, seminários ou mesmo em sala de aula – a ação avassaladora do homem em destruir o patrimônio brasileiro – os vestígios e os exemplares da nossa arquitetura mais antiga, razão porque precisamos, de maneira consciente, ampliar a ação da pesquisa arqueológica – mesmo em sítios que não tenham recebido a proteção oficial – em busca de novas informações precisas. Na verdade, uma das questões que mais intriga a arqueologia histórica não é somente o trabalho concentrado nas definidas áreas tombadas, mas sim, em obter informações em sítios ou áreas ainda não protegidas para que estas áreas históricas não sofram a depredação que outrora sofreram os sítios que nós conhecemos. Recorro, mais uma vez, a Monberg (1968, p.21) quando ele faz referências a que “muitos sítios são destruídos pela construção de cidades, fábricas, estradas e aeroportos”, muitas vezes sem a presença de um arqueólogo que possa identificar e registrar os vestígios encontrados, sabendo-se, pois, que cada observação registrada corresponde à perda de várias outras em caráter definitivo.
Não obstante a tamanhas incompreensões e dificuldades, a arqueologia histórica vem, na verdade, realizando inúmeros trabalhos em vários sítios encontrados, aprimorando técnicas, diversificando olhares e obtendo novas informações, através dos núcleos e laboratórios de arqueologia das universidades federais e/ou particulares, espalhadas pelo país.
Todos esses trabalhos, alguns dos quais já concluídos, encerram objetivos de transformarem o bem restaurado em espaços culturais abertos à visitação pública de modo que se tenha uma exposição permanente, tanto dos elementos arquitetônicos restaurados, quanto dos vestígios arqueológicos encontrados – a exemplo da Primeira Sinagoga das Américas, na Rua Bom Jesus, no Recife Antigo (1978) e do Edifício do
Paço da Alfândega, no secular bairro de São José, no Recife (1976) – que se constituem em importantes referências de trabalhos de arqueologia histórica em Pernambuco.
Quantas vezes a arqueologia histórica haverá de argumentar sobre um simples vestígio evidenciado para mostrar que este vestígio é uma fonte de informação e que pelo fato de ter sido encontrado cria uma inegável importância e possibilidades de resgatar a nossa memória histórica?
Fernando Guerra / Departamento de Arqueologia/UFPE
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